segunda-feira, 22 de abril de 2013

Heroísmo e ficção no cotidiano do trabalho


Flávia Naves

“Ela ainda deixou 20 reais para trás. Disse que no trabalho como professora não ganhava isso então, não era justo receber esse valor como cozinheira.” Contou-me essa história, entre espantada e descrente, a dona da pousada que economizara, por absoluta resistência da trabalhadora, 20 reais.

Já fazia alguns meses que a pousada estava sem cozinheira até que a professora dessa história apareceu. Explicou que, como trabalhava em uma escola com alunos do ensino médio poderia trabalhar na pousada apenas nos feriados e finais de semana. Fecharam acordo. A dona da pousada ficou satisfeita com o trabalho: “melhor cozinheira que eu!”, confidenciou.

Essa situação é provavelmente muito comum nos dias atuais. Infelizmente, uma professora buscar outra atividade para complementar renda é algo comum para professores de diferentes níveis de ensino. Entretanto, essa naturalização não é suficiente para diminuir meu incômodo sobre esse fato que revela muito sobre as relações de trabalho no Brasil.

Vejamos. A professora não ganha o suficiente para sobreviver. A professora revelou-se uma excelente cozinheira, trabalho que foi muito valorizado e pelo qual ela poderia ganhar mais.  Mas então por que a professora não aceitou o pagamento considerado justo pela dona da pousada? Por que a professora não permitiu que a cozinheira ganhasse mais do que a professora, mesmo sendo papeis de uma mesma pessoa? Na impossibilidade de ouvir o relato de nossa protagonista (que, aliás, não conheço), arrisco-me a interpretar suas razões.

Talvez a professora estivesse defendendo o sonho de uma profissão, de uma carreira na qual ela deve ter investido muito tempo, recursos, esforços e sobre a qual construiu expectativas, relações, uma posição social.  Ganhar mais em uma atividade considerada “menor” em relação a sua profissão é desqualificar-se e desconstruir toda uma visão de mundo, uma trajetória, planos para o futuro. Mas, para manter sua profissão é preciso defendê-la buscando complementação de renda, impedindo que outras atividades (principalmente aquelas consideradas inferiores) recebam remuneração maior. Ainda que o dinheiro vá para suas próprias mãos.

Essa história revela uma hierarquização de profissões e atividades que faz parte do senso comum e que implica em preconceito e discriminação contra determinadas categorias profissionais (que se somam a outras tantas desigualdades). Isso é usado para justificar que, mesmo com a demanda crescente por profissionais, uma cozinheira não pode ganhar mais do que uma professora. Ou melhor, para justificar que uma cozinheira deve submeter-se a remuneração menor do que uma professora, mesmo que essa última não ganhe o suficiente para sobreviver. Pronto. Temos trabalhadores lutando contra trabalhadores.

Talvez o gesto da professora seja uma tentativa de legitimação de sua posição em oposição a crescente desvalorização da educação em nossa sociedade. Professores trabalham muito, em jornadas intensas (frequentemente em mais de uma escola), em ambientes precários, investem em qualificação sem retornos compatíveis e precisam lidar, dentro das salas de aula, com dramas familiares e pessoais, problemas sociais de grande magnitude para terem a possibilidade de executar seu trabalho.

Então, quando se percebe a tristeza e a luta envolvida nessa profissão, apela-se para a ficção repetindo que diante de tantas adversidades o professor é um herói. Um estereótipo que não ajuda, não convence e ainda pode alimentar outros dramas. Considerando-se heróis, professores resistem a toda precarização de trabalho que lhe é imposta e ainda alimentam uma suposta superioridade em relação a outras categorias profissionais. Ilusões. Professores não são heróis. São humanos e profissionais.

Se nossa protagonista professora-cozinheira tivesse aceitado o pagamento completo pelo trabalho que executou, talvez tivesse rompido com a aura de heroísmo que envolve sua profissão de professora. Ela se preservou. Evitou, ainda que provisoriamente, rever suas ideias, suas expectativas e seus planos.

Como sociedade, alimentamos por vezes a mesma ficção e contribuímos para a desvalorização do trabalho digno do professor, da cozinheira, do médico, da empregada doméstica e de tantos outros profissionais. Cobrimos com um envernizado discurso sobre valorização da educação e igualdade social as contradições que povoam nosso cotidiano, as lutas pessoais que ocupam o lugar dos debates e mudanças sociais nos esquecendo de que não há heróis para nos salvar.


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